Fernando Pessoa para dois

 

Quando músicos tentam musicar poemas que não foram originalmente compostos para serem cantados, são raras as vezes em que os resultados se mostram bons. Afinal, os métodos de composição, ainda que busquem o privilégio da voz, diferem. Não basta só colocar um piano, um violão e fingir que está tudo bem.

Um dos poucos exemplos bem-sucedidos dessa empreitada pode ser encontrado no disco Délibáb, de Vitor Ramil, que traz versões para poemas de Jorge Luis Borges e João da Cunha Vargas. Um trabalho que traz a personalidade do músico pelotense, sem deixar de lado as intenções originais dos poetas homenageados; isso é, sem ter a pretensão de reinventar a roda.

No caso do álbum duplo Dois em Pessoa Vol. 2, do casal Renato Motha e Patricia Lobato, o resultado não é apenas satisfatório: é enormemente prazeroso e de bom gosto. Os dois caminham na mesma direção do imortal e múltiplo poeta português, acompanham de perto os seus passos caligráficos e sonoros, sempre com razoabilidade e admiração. Não atravancam o caminho dos seus versos e nem esbarram na lírica clareza de seus pensamentos. São como antenas que não apenas repassam um sinal, mas que também o amplia.

Entre as 26 músicas do projeto, divididas em 13 sambas e 13 canções, estão lindas versões de poemas já musicados anteriormente como, Não Diga Nada (Secos e Molhados) e a igualmente bem feita Noite de São João (Vitor Ramil). Aqui abro um parêntesis para colocar, entre as melhores versões já feitas para poemas de Pessoa, Um Carro de Bois, interpretado pela cantora Leopoldina Azevedo em seu primeiro disco –  poema que também teve uma versão gravada por Renato e Patrícia para o primeiro volume de Dois em Pessoa, de 2004, com participação de Vander Lee.  

Ainda que existam centenas de versões espalhadas em diversas discografias de outros artistas, estes exemplos que citei anteriormente se configuram como esforços isolados, pois conseguem transmitir a essência dos versos que escolheram deitar em camas instrumentais. Ao contrário de algumas baboseiras eletrônicas de gosto duvidoso que frequentemente aparece por aí.

Consciente ou inconscientemente, a dupla foi arguta ao escolher não gravar versões dos poemas do livro “Mensagem”, que teve 44 poemas gravados em um projeto realizado pelo cineasta e músico André Luiz Oliveira, com a participação de 33 intérpretes, entre eles Gilberto Gil, Gal Costa, Ney Matogrosso e Caetano Veloso. Não que as versões de Oliveira sejam canônicas, mas carregam nos ombros o peso dos medalhões. A seleção dos poemas feita por Renato e Patricia foi acertada ao optar um caminho mais pessoal, não guiado por outras bússolas.

Com a ajuda do piano de Tiago Costa, que permeia 22 faixas, a mente do ouvinte flui feito cachoeira durante a escuta. As vozes dos dois cantores se abraçam e dançam suavemente. Separadamente, cada uma tem sua própria cor e o encontro entre elas cria uma nova, com inúmeras possibilidades de matizes e tons. Os arranjos assinados por Renato não soam como simples acompanhamento, como música ambiente. Elas se mostram completas, inteiras, não como muletas que amparam a voz. Cada música é uma imersão no universo pessoano, com suas angústias, dilemas, descobertas e encantamentos.

O cuidado e esmero com o acabamento físico (com o projeto gráfico de Clara Gontijo e ilustrações e pinturas de Leonora Weissmann e Nando Fiúza) é algo que precisa ser ressaltado. Dá gosto de ouvir e de ver. Um prato cheio para quem ainda tem essa ligação tátil com a música.

Renato e Patrícia formam uma das melhores coisas que está acontecendo na música brasileira e o segundo volume de Dois em Pessoa, se não confirma, reforça essa ideia.

 

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Álbum: Dois em Pessoa Vol. 2
Autor: Renato Motha e Patricia Lobato
Ano de lançamento: 2017
Gravadora: Independente

Avaliação: * * * * * | Excelente

Ouça o disco:

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